Um século da Faculdade de Medicina USP

Clique nos links para navegar nas coleções da Revista de Medicina e do Jornal O Bisturi.

Dois veículos de comunicação criados pelos alunos da Faculdade de Medicina a quase cem anos – a Revista de Medicina (com 97 anos) e o Jornal O Bisturi (com 83 anos de existência) – revelam muito da história da Medicina no país, no Estado de São Paulo e, mais especificamente, na Universidade de São Paulo.
Em comemoração ao aniversário de 100 anos da Faculdade de Medicina da USP e buscando registrar a história eternizada em seus fascículos, preservar sua continuidade e otimizar a divulgação e o acesso público, o Sistema Integrado de Bibliotecas (SIBiUSP) em trabalho coordenado e integrado com as equipes do Museu Histórico da Faculdade de Medicina e da Biblioteca da Faculdade de Direito, lança em 29 de novembro de 2013 a coleção digital completa de todo esse acervo.

Tais publicações passam a estar disponíveis publicamente de duas maneiras distintas:

(a) A Revista da Faculdade de Medicina

– faz parte do Portal de Revistas da USP facilitando a busca individual dos artigos publicados por autor, ano, assunto, além de índices alfabéticos diversos.

– e também faz parte da coleção histórica de revistas publicas pela USP junto a essa Biblioteca Digital de Obras Raras, Especiais e Documentação Histórica da USP, onde é possível a busca e download individual dos fascículos da coleção completa.

(b) O Jornal O Bisturi está disponível em texto completo fascículo a fascículo na Biblioteca de Obras Raras, Especiais e Documentação Histórica da USP.


A vida acadêmica na Faculdade de Medicina refletida em duas publicações quase centenárias

A Revista de Medicina

Entre 1889 e 1930, durante a chamada Primeira República, a imprensa no Brasil se diversificou, conhecendo diversas formas de inovação tecnológica que permitiam o uso de charges, caricaturas e fotografias, como também a ampliação de suas tiragens, com melhor qualidade de impressão e menor custo, resultando num “ensaio da comunicação de massa”[1]. Dentre essas transformações[2], é importante destacar a diversidade que passou a constituir esse material, “com impressos de vários matizes políticos, muitos de expressão reivindicatória, periodicidade variada, segmentação enriquecida e pluralidade temática, sobretudo nos cenários urbanos que se modernizavam”[3]

É nesse contexto que encontramos uma série de revistas e jornais sendo produzidos na Faculdade de Medicina (FM) tendo, contudo, duas delas perenidade até os dias de hoje[4]. A primeira foi a Revista de Medicina, divulgando os primeiros passos da vida acadêmica do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) e da produção científica estudada e divulgada por professores e alunos. Para isso, não cansou de pedir a publicação dessas produções, afinal, “poderiam não só dar à medicina paulista contribuição das mais vultosas, como constituir a mais preciosa fonte de estímulo dentro da escola”[5]. Esse chamado ganhou significado relevante pela produção que conseguiu divulgar, principalmente aquela em que apontava uma luta das especialidades médicas, bem como de teorias que informavam muitas dessas áreas.

Entre as pendências a resolver para sua manutenção, contavam-se os custos da publicação, com pedidos feitos pelos alunos, inclusive, ao governo do estado no sentido de que sua produção fosse contínua. Mesmo diante de impasses dessa natureza, a revista foi lançada e custeada pelo grêmio em julho de 1916, apresentando em suas primeiras páginas as palavras do Professor Catedrático de Fisiologia, Ovidio Pires de Campos, tecendo considerações sobre a necessidade de se transferir o centro acadêmico para a responsabilidade dos que apoiassem e ajudassem a edificar o nome da Faculdade de Medicina:

“É muito para louvar-se esse belo empreendimento dos seus dirigentes, que, assim, e ainda uma vez, dão evidentes mostras de como nítida e claramente souberam compreender, interpretar e tornar efetivos os verdadeiros intuitos do grêmio – a cuja superintendência emprestam boa parte do seu esforço e da sua atividade, e o seu natural ardor –, obstando a que, das elevadas cogitações de ordem científica, pudesse o Centro resvalar e despenhar-se e vir achatar-se nos baixios infrutuosos das lutas e competições pessoais. Ao Centro, lhe não bastaram as primícias de, pela sua tribuna, haver inaugurado e solidamente estabelecido a obra altamente meritória de vulgarizar as boas doutrinas e de disseminar por entre os seus associados aqueles dos princípios que os devem guiar e a que se devem jungir no exercício da sua futura profissão: quis ir além, decidindo, com raro acerto, que, nas páginas desta revista, essa mesma obra – assim tão auspiciosamente levada a cabo – se continuasse, mais ampla e mais intensa, e se perpetuasse, irmanando, na mais completa e perfeita comunhão de ideais, mestres e discípulos.[6]

Dentre aqueles que se manifestaram a respeito, Arnaldo Vieira de Carvalho enviou uma carta ao diretor do Caoc nos seguintes termos:

[…] peço por isso V.S. receber sinceras felicitações pelo sucesso alcançado pela Revista de Medicina e, com elas, meus votos ardentes para que continuem os alunos desta faculdade a cultivar, com o mesmo ardor demonstrado, a ciência, enobrecendo assim a profissão médica, dignificando a Escola […][7]

Também fez referência à Revista o então Presidente do Estado, Altino Arantes, sublinhando que;

Vê-se em suas páginas uma eloqüente prova de aplicação e de operosidade dos sócios do Centro e, em geral, dos alunos da Faculdade de Medicina e Cirurgia, ao mesmo tempo que se verifica como é grande neles o amor ao estudo e ao bom nome do instituto que frenqüentam.[8]

Outro momento importante para a Revista de Medicina será a de apontar as transformações ocorridas no campo médico paulista com a inauguração do Hospital das Clínicas no ano de 1944 e a constituição de seus institutos e hospitais de retaguarda, permitindo que muito do conhecimento médico fosse ali elaborado e, em parte, expresso pelas linhas da Revista de Medicina até os dias atuais. Não há dúvida, de que, com o passar dos anos, a revista ganhou esse definitivo lugar do conhecimento médico, voltado para as suas tecnologias e campos de conhecimento. Sua publicação está sob a responsabilidade do Departamento Científico e está indexada nas Bases de Dados LILACS e Latindex

Jornal O Bisturi

A tradicional Revista de Medicina, publicação estudantil da Faculdade de Medicina (FM) da Universidade de São Paulo (USP), trouxe no corpo de suas matérias, uma notícia sobre o surgimento de um novo jornal com o nome O Bisturi, “tipo perfeito do jornal de estudantes: resolve todos os problemas, mesmo os mais graves, comenta todos os fatos e, quando estes são muito sérios, trazem ao fim uma piada. É um resumo simpático do que se faz, se diz e se pensa fora das aulas. [9]

Lançado em 15 de março de 1930, O Bisturi propunha em suas primeiras linhas ser: “o companheiro de todas as turmas: é calouro e doutorando; é esforçado e vadio, alegre e pensativo; é desportista e poeta. Seu nome define: ‘O bisturi’ (de estudantes). Nunca chega a criar ferrugem, mal manejado, não corta; em mãos despertas, não fere. O jornal é indispensável. Este número de hoje é a primeira fornada, talvez um pouco crua, que sai como amostra só para se tomar o gosto das demais que se seguem, separadas pelo menor tempo possível, sem data pré-estabelecida.”[10]

A identidade jornalística se compunha da vida estudantil frente às mudanças vividas pelos alunos e pela cidade de São Paulo, conferindo “expressões próprias” de um “grupo diferenciado”. Vindos dos mais variados pontos do estado e do país, esses estudantes traziam na bagagem ideias e princípios diversos, acabando por desenvolver “tipos excepcionais de comportamento”[11], a que se deve acrescentar o fato de constituírem uma corporação em formação, tratando de tipologias e expressões muitas vezes só identificáveis entre os pares. Nesse sentido, o Jornal se dizia representante de toda a classe estudantil médica e era aberto à colaboração de todos que quisessem participar: “não queremos fazer de nossa folha simplesmente arquivo de pensamento estudantino, mas o condensador de ideias novas e de todas as aspirações de nossa classe. Avante!”[12]

Irônico e cheio de bom humor, O Bisturi conseguiu desenhar o cotidiano da Faculdade de Medicina (FM) narrando viagens e aulas, caricaturando alunos, professores e funcionários e usando de suas páginas para reivindicar melhorias no ensino, na pesquisa e na assistência médica. Sobretudo, o Jornal foi capaz de representar os anseios da elite médica e científica paulista, bem como sua vida na cidade de São Paulo, através da variedade de suas propostas jocosas, matizadas por um sarcasmo médico-estudantil.

A sobrevivência, até os dias atuais, de um jornal estudantil como O Bisturi estará em forte relação com os desígnios tomados pela escola médica durante as próximas décadas. Se pudemos acompanhar essa primeira fase, relativa a própria organização da Faculdade, inclusive, de sua incorporação à Universidade de São Paulo é importante ressaltar um momento de inflexão e politização dos discursos no jornal advindos dos próximos anos com os ecos da ditadura militar, a partir de 1964, colocando o próprio Centro Acadêmico em suspenso. Essa guinada politizadora do jornal passou a demonstrar, desde então, uma preocupação estudantil mais particular com a organização corporativa médica e, principalmente, com o ensino ministrado na FM. Já os espaços para as brincadeiras, poesias e as piadas, que tomavam conta de quase todo o jornal em suas primeiras tomadas foram limitados, reiterando um campo menos jocoso, mesmo que seu nome O Bisturi continue a eternizar os risos entre seus pares e de outros leitores também.


[1] ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Imprensa a serviço do progresso. In: MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia Regina de (orgs.) História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p.83.
[2] A força de tais empreendimentos acarretou o próprio surgimento da Associação de Imprensa, em 1908, e, logo depois, a Associação Brasileira de Imprensa, em 1926, sob a presidência de Barbosa Lima Sobrinho.
[3] Idem, p.86.
[4] Entre eles, citamos: O Espiroqueta (jornal-da Faculdade de Medicina); 606; Caóctica (revista do departamento cultural do Caoc); Sob os bigodes de Arnaldo (des-informativo do departamento científico do Caoc); BIP (Boletim informativo periódico); Caveira (revista da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz);
[5] Editorial. Chronica. Revista de Medicina, São Paulo, anno XIII, n.50, 1928, p.1.
[6] Revista de Medicina (Orgam do Centro Academico Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo), São Paulo, anno 1, n.1, jul. 1916, p.3-4.
[7] CARVALHO, Arnaldo Vieira de. Carta enviada à diretoria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz. Acta da sessão ordinaria da directoria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, realizada em 26 de setembro de 1917, p.27 (mimeo).
[8] ARANTES, Altino. Carta enviada à diretoria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz. Acta da sessão ordinaria da directoria do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, realizada em 26 de setembro de 1917, p.28 (mimeo).
[9] Editorial. Chronica. Revista de Medicina, São Paulo, anno XIV, n.52,1930, p.1.
[10] Editorial. O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, n.1, ano 1, 15 mar. 1930, p.1.
[11] CAMILO, Vagner. Risos entre pares: poesia e amor românticos. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1998, p.37.
[12] O bisturi (periódico literário, humorístico e noticioso), São Paulo, n.1, ano 1, op.cit., p.1.

Prof. André Mota
Coordenador do Museu Histórico do Museu da Faculdade de Medicina da USP

To top
Pular para o conteúdo